Um pequeno país africano viu-se, já no fim do século XX, envolvido em um conflito étnico que custou a vida de milhares de pessoas. O silêncio internacional foi uma das marcas do genocídio em Ruanda, porém fatores internos também tiveram sua importância no conflito.
M.Ouriques
O intuito deste ensaio é de expor não somente o massacre ocorrido entre os meses de abril e julho de 1994, mas buscar o ponto da história ruandesa de onde haveria desencadeado tal conflito. E buscar este ponto demanda explanar vários lados sobre o mesmo tema, como a manipulação das elites locais, a escassez de recursos ecológicos dentro de uma sociedade basicamente rural, a obediência ou não das massas hutus no massacre, dentre outros pontos que poderão surgir nesta discussão.
É importante que fique clara, mesmo que sinteticamente, a conjuntura internacional no qual Ruanda se insere e, naturalmente, a conjuntura interna do próprio país, mas para tal compreensão é preciso recuar no tempo da história ruandesa.
A expansão bantu entre os séculos XIII e XIV fez com que a região da atual Ruanda fosse povoada por dois povos diferentes: hutus, povo bantu do rio do Congo, e posteriormente tutsis, pastores da região da Etiópia. Ainda há na região uma pequena porcentagem do povo twa (também conhecidos como pigmeus), que assim como os hutus baseavam-se em atividades agrícolas e no escambo.
Segundo Nilson da Silva Moreira:
A partir do século XV, os tutsis passaram a dominar a sociedade por meio de aristocracias que tinham como líder um Mwami (rei), sendo interessante mencionar que em Ruanda a proporcionalidade entre grupos humanos é: 90% de hutus, 9% de tutsis e 1% de twa.
Importante que se frise aqui que estes povos apresentam ainda algumas diferenças físicas que se tornaram cruciais durante o conflito. O povo hutu é normalmente de estatura baixa, de pele mais escura e narizes chatos, já os tutsis ao contrário são mais altos, mais claros em relação aos hutus e possuem nariz mais afilado, possuindo uma aparência mais européia em relação à maioria hutu ruandesa.
Desta forma, naquele território, a partir de um determinado momento, passaram a coexistir grupos étnicos distintos. Estão em convívio culturas, visões de mundo e atividades diferentes. A heterogeneidade dos grupamentos humanos no mesmo espaço acabara por materializar formas espaciais distintas e gerara uma forma de controle político. Um grupo com maior propensão à dominação, e outro mais subserviente, explica a então supremacia dos tutsis, mesmo sendo estes numericamente menos populosos.
A conjuntura internacional está intimamente ligada a Ruanda, uma vez que o território ruandês, após o fim da I Guerra Mundial e a derrota alemã no conflito, por determinação da Liga das Nações deixou de ser um protetorado alemão sendo entregue à Bélgica.
Em 1932 o governo belga, como mais uma das manobras para manipular e acentuar a divisão entre hutus e tutsis, criou um documento de identidade étnica, o que
gerou uma situação sem retorno. A restrita elite tutsi recebeu privilégios e cargos de comando dos colonizadores, despertando o ódio crescente pela maioria oprimida, os hutus, o que viria a desencadear, no decorrer do tempo, a aceleração na direção do genocídio
A criação deste documento só acirrou ainda mais a distinção entre os dois povos, que apesar das diferenças físicas anteriormente citadas, estas não eram tão perceptíveis como se imagina: “apesar de hutus e tutsis terem feições diferentes de modo geral, é impossível dizer se certos indivíduos são deste ou daquele grupo com base na aparência”
Percebe-se, portanto, a manipulação de uma minoria em detrimento da maior parcela da população, atribuindo-se vantagens a uma restrita elite tutsi, despertando a indignação dos hutus.
Porém os fatores étnicos e a intervenção política por parte da Bélgica em Ruanda não podem ser considerados como únicos atores responsáveis pela geração do conflito entre hutus e tutsis. São, sim, fatores de extrema relevância, porém sua presença não exime a responsabilidade de fatores domésticos da responsabilidade do conflito.
Ruanda é um país que além de sofrer com a elevada densidade populacional tem sua economia voltada para as atividades agrícolas que é “muito menos eficiente e não mecanizada; os agricultores dependem de enxadas, picaretas e machetes (...) produzindo pouco ou nenhum excedente que possa sustentar outros”
Em um território com uma das maiores taxas de densidade demográfica do mundo somado a uma concorrência entre a população local pelas terras férteis onde cultivavam especialmente o chá e o café é de se compreender que a tensão entre os dois povos estava presente no cotidiano. Fica perceptível, portanto, que o cenário ruandês no que tange as relações entre os dois povos já se mostrava tenso com a disputa de terras para a agricultura.
A nova ordem mundial que tem como centro o jogo do mercado trouxe consigo uma série de conflitos que já estavam contidos por muitos anos em um mundo bipolar, porém Rússia e EUA não se vêem mais como adversários e conflitos étnicos, econômicos e religiosos fazem parte da pauta desta nova realidade.
“E foi nesse contexto de final da Guerra Fria que Ruanda, como órfã da ideologia do conflito maior (leste-oeste), assistiu a invasão de seu território pelos exilados tutsis ruandeses vindos de Uganda”
Cronologicamente falando costuma-se associar o início do genocídio em Ruanda com o atentado, ocorrido em 6 de abril de 1994, ao jato presidencial derrubado por mísseis no aeroporto de Kigali matando o presidente ruandês (hutu) Habyarimana e o presidente do Burundi, porém muitos foram os fatores que incitaram o início deste conflito.
Ainda recuando um pouco no tempo, Ruanda obteve sua independência em 1962 e com “a proximidade da independência, os hutus começaram a lutar para derrubar a dominação tutsi e substituí-la pelo domínio hutu” . O conflito entre os dois povos fez com que milhares de tutsis buscassem exílio em países vizinhos a Ruanda, como Uganda e Burundi.
Ruanda pode viver, com Habyarimana no poder, por um período próspero recebendo doações de outros países durante quinze anos. Porém problemas ambientais acrescido a uma queda nos valores dos principais produtos de exportação de Ruanda, o chá e o café, puseram fim à efêmera e boa fase econômica do país.
Voltando ao atentado ao avião presidencial em abril de 1994, ainda não se sabe ao certo qual sua autoria, porém foi a partir de então que os extremistas hutus iniciaram seus planos de matar tutsis e hutus moderados.
Eliminada a oposição hutu, os extremistas tomaram o governo, a rádio e começaram a exterminar os tutsis de Ruanda, que ainda somavam cerca de um milhão de indivíduos, mesmo após todas as chacinas e exílios anteriores
Um veículo tragicamente famoso foi a rádio Mil Colinas (Mille Colline), tomada por extremistas hutus, passou a transmitir em sua programação o repúdio aos tutsis bem como a localização destes indivíduos para que fossem prontamente eliminados. E não obstante ao incentivo midiático ao ódio aos tutsis, a missão dos capacetes azuis da ONU que foram destinados à Ruanda para auxiliar na implementação de acordos e da paz no país, tiveram uma atuação praticamente insignificante ao lado de um conflito de tamanha proporção. A atuação da ONU frente à um país que clamava por socorro em um momento de total desespero foi tão omissa quanto de qualquer outro país que deveria intervir pela paz entre os dois povos naquele dado momento. Em 1999, a ONU, elaborou um relatório sobre a situação de Ruanda e mesmo reconhecendo seu fracasso, coloca a responsabilidade no governo dos EUA por terem postergado o envio da força de paz para o país em conflito.
A propagação do ódio resultou na formação de uma milícia não oficial chamada Interahamwe, que significa “aqueles que atacam juntos”. Em pouco mais de três meses, uma terrível onda de violência tomou as ruas de Ruanda provocando a morte de 800 mil tutsis. O conflito contra as tropas governistas acabou sendo vencido pelos membros do FPR, que tentaram estabelecer um regime conciliatório.
Tão chocante quanto o massacre foi o desprezo com que a comunidade internacional tratou o assunto.
Com a guerra civil deflagrada, o general que comandava as tropas da ONU em Ruanda, Romeu Dallaire percebeu a urgência do auxílio de outros países. O comandante, apesar dos insistentes apelos ao futuro secretário Kofi Annan entre dezembro de 1993 e abril de 1994, não obteve resposta a tempo de evitar mais homicídios no país.
Já em 2001, a agência de notícias Reuters divulgou através de documentos que autoridades norte-americanas já “sabiam quem estava por trás do genocídio, em Ruanda, em 1994”
Pior que o silêncio e a negligência dos dirigentes da ONU foi à atuação da França, que além de apoiar os extremistas hutus, sustentou o conflito com o financiamento na compra de armamentos, adquiridos, principalmente, da China. Além do apoio financeiro é importante salientar que a França auxiliou no treinamento das Forças Armadas do país.
Em 2007 um jornal francês publicou documentos, do período do governo de François Miterrand, do governo apoiando os líderes em “Ruanda, responsáveis pelo genocídio que matou entre 800 mil e um milhão de pessoas (...), mesmo ciente de que o massacre era iminente e estava sendo planejado com antecedência”
Esta convergência de diversos fatores internos e externos moldou a deflagração da tragédia em Ruanda. E para falar de violência e tantos traumas é importante que se traga à tona os relatos dos sobreviventes e órfãos de Ruanda. E as palavras de uma assistente social ruandesa mostram claramente a extrema violência e a apatia de quem assistiu em silêncio milhares pessoas sendo mortas a facão diante dos olhos:
No fundo de mim mesma não se trata de perdão ou de esquecimento, mas de reconciliação. O branco que deixou os assassinos agirem, não há nada a lhe perdoar. Quem olhou o vizinho abrir o ventre das moças para matar o bebê diante dos olhos delas, não há nada a perdoar. Não há por que desperdiçar palavras para falar desse assunto com esta gente. Só a justiça pode perdoar...
A violência sexual contra as mulheres tutsis também fez parte dos dias de massacre em Ruanda, como um claro e doloroso exemplo de uma subordinação étnica, “tais abusos, caracterizados pela degradação das mulheres, foram perpetrados tanto como ataques contra a honra do grupo quanto, é claro, como atos contra as próprias mulheres."
Dentro de uma sociedade rachada etnicamente não se pode descartar que muito embora hutus e tutsis estivessem em lados opostos, muitos deles conviviam harmonicamente, havendo inclusive casamento entre os dois grupos. Os dois grupos étnicos
eram tão interligados na sociedade de Ruanda que, em 1994, os médicos acabaram matando seus pacientes e vice-versa, professores mataram alunos e vice-versa e vizinhos e colegas de trabalho se mataram entre si. Alguns hutus matavam certos tutsis enquanto protegiam outros.
Apesar das adversidades e dos fatores domésticos que dividiam a sociedade ruandesa, fica claro que muitos dos indivíduos dos dois grupos conviviam naturalmente como colegas de trabalho ou mesmo como professor e alunos. Esta aparente união no cotidiano dos dois povos dá margem para realçar que a manipulação belga nas elites tutsis teve crucial importância na deflagração do genocídio.
De um lado um país convivendo com uma densidade demográfica extremamente alta (algo em torno de aproximadamente 375,9 habitantes por km2), com uma economia voltada para uma agricultura atrasada e de outro o ódio racial insuflado por políticos belgas, a ONU que pouco ou nada fez pelos ruandeses e seus boinas azuis em número tão reduzido de homens que ficaram de mãos atadas diante de um grande contingente de extremistas hutus tomados pelo ódio e munidos de facões e machetes. A união de tantos fatores moldou a deflagração da tragédia que não seria tão grande - cerca de 11 % da população foi morta - se o mundo não tivesse fechado os olhos para um país que, com diminuta importância econômica mas não humana, gritou por socorro e nada teve como resposta. O que os ruandeses (hutus, tutsis e twas) assistiram foram mutilações, estupros, centenas de milhares de corpos espalhados pelas ruas do país, e nada puderam fazer além de buscarem abrigo para suas famílias e amigos contando com o incerto e sendo assombrados constantemente com a possibilidade de serem surpreendidos pelos facões do ódio étnico.
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