junho 23, 2009

Romantismo, política e criação cultural: ação ou reação?

Falar sobre Romantismo é falar de mudanças...na sociedade, nas ideias.
A poesia abolicionista de Castro Alves é um dos exemplos mais lindos do que a literatura brasileira já produziu.
Minha ideia é usar o Romantismo como pano de fundo para decifrar "O Navio Negreiro - Tragédia no Mar".
M. Ouriques

O século XIX foi marcado por uma série de mudanças no cenário europeu, uma quebra de continuidade ocasionada pelo impacto das revoluções dentro da sociedade. E foi a tomada de consciência gestada na Revolução Francesa e na Revolução Industrial que constituiu a corporificação dos pensamentos nas criações de intelectuais na ânsia de uma nova época.
O Romantismo como percepção artística é um grande veículo representativo deste período marcado por mudanças sociais, políticas e culturais, que vai contrapor-se a desordem da sociedade vigente e defrontar-e como modelo clássico, especialmente o francês.
A Revolução Industrial, iniciada na Inglaterra, provocou a divisão de trabalho, o nascimento da uma classe operária, simultaneamente a uma explosão populacional. Este movimento significou uma mudança fundamental na estrutura social européia.
Já a Revolução Francesa ocorrida no fim do século XVIII influenciou, com suas idéias, movimentos revolucionários em várias outras nações, rompeu o elo entre o indivíduo e o despotismo da monarquia e da igreja, lutou pelos direitos individuais que foram consolidados na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
A resposta para estas mudanças, que apesar de significativas não mostravam com clareza uma expectativa no horizonte da sociedade, ocorreu através dos intelectuais, é o que Elias Saliba mostra em sua obra Utopias Românticas. Como se o artista tivesse imbuído de desenhar os traços ideais para esta nova sociedade. Várias foram as formas com que estes utópicos usaram para se expressar, como o poema lírico onde se destaca o nome de Byron, por exemplo.
Há uma mudança nestas produções após as revoluções de cunho socialista de 1848, houve aqui um processo de esgotamento das utopias românticas, passando para produções de ordem social. Neste mosaico de ideologias fizeram parte Lamartine, Karl Marx, Victor Hugo dentre outros nomes.
No que concerne este período de transformações no velho continente, Elias Saliba consegue dar uma visão geral principalmente política do novo quadro europeu, mas não é só a Europa que passa por mudanças.
O Brasil do século XIX também esta se modificando, no início a chegada da família real portuguesa com toda uma estrutura administrativa real, a discussão para o fim da escravidão bem como sua consolidação em 1888, o fim da monarquia e o início da República já no final do século. São mudanças, que assim como ocorreu na Europa, irão se refletir nas criações culturais brasileiras.
A poesia romântica no Brasil tem início em 1836 com Gonçalves de Magalhães e seu livro Suspiros Poéticos e Saudades. A poesia brasileira assume um caráter nacionalista, isso ocorre bem no período pós independência. Utópicos, os primeiros autores românticos buscam no nativismo da literatura os pilares sobre os quais se criaria uma nova identidade nacional. Mas uma nova fase do romantismo que ocorreu já na segunda metade do século XIX, mais precisamente entre 1850 e 1870, chamada de condoreirismo, inspirado na altura do vôo do condor, revelou o que foi um dos poetas mais populares do Brasil: Castro Alves.
Castro Alves traz um trabalho fecundado pela adesão ao caráter social e idealista de Victor Hugo. Em 1883 é publicada – doze anos após a sua morte – a obra Os Escravos, onde toma a luta abolicionista como discurso que o consagrou como o poeta dos escravos. Em seus versos ressalta a tragédia da escravidão, o abolicionista quis despertar com seus poemas a sociedade que conviveu por três séculos de escravidão.
Utilizada constantemente como um dos maiores exemplos de denúncia aos horrores da escravidão o poema Navio Negreiro - Tragédia no Mar, que com estrofes grandiosas, fervia de justa indignação. Era a crítica do seu tempo transformado em poema-discurso.
O poema que é datado de 18 de abril de 1868, porém o fim do tráfico escravo já havia sido legalmente proibido na Lei Eusébio de Queirós de 1850 e em 1854 fora assinada a Lei Nabuco de Araújo que impedia o desembarque de escravos nas costas brasileiras, carrega toda indignação deste abolicionista (as leis estavam sendo cumpridas?).
Nos seus primeiros versos do poema, o autor chega a ignorar o seu subtítulo – Tragédia no Mar- observando a beleza e a grandiosidade do cenário. Trazendo elementos como astro, infinito que denotam a visão do condoreirismo de Castro Alves:

'Stamos em pleno mar... Doudo no espaço
Brinca o luar — dourada borboleta;
E as vagas após ele correm... cansam
Como turba de infantes inquieta.

'Stamos em pleno mar... Do firmamento
Os astros saltam como espumas de ouro...
O mar em troca acende as ardentias,
— Constelações do líquido tesouro...

'Stamos em pleno mar... Dois infinitos
Ali se estreitam num abraço insano,
Azuis, dourados, plácidos, sublimes...
Qual dos dous é o céu? qual o oceano?...

Porém este cenário se opõe a quinta parte da obra, onde esta paisagem que convida à acompanhar a viagem em um cenário suave vê-se no mar poluído pela tragédia da escravidão - o borrão. Nota-se a característica clara do Romantismo: a denúncia social:

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!

Ainda no final da primeira parte o poeta clama, criando um símbolo condoreiro, pelo albatroz . Enquanto na poemática clássica era hábito recorrerem-se as musas:

Albatroz! Albatroz! águia do oceano,
Tu que dormes das nuvens entre as gazas,
Sacode as penas, Leviathan do espaço!
Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas...

Um novo contraste surge na segunda parte do poema, depois de denunciar os maus tratos dentro dos tumbeiros, Castro Alves mostra a glória dos marinheiros do mundo: ingleses, espanhóis, italianos, helenos, franceses:

Que importa do nauta o berço,
Donde é filho, qual seu lar?
(...)
Do Espanhol as cantilenas
Requebradas de langor,
Lembram as moças morenas,
As andaluzas em flor!

Da Itália o filho indolente
Canta Veneza dormente,
— Terra de amor e traição,
Ou do golfo no regaço
Relembra os versos de Tasso,
Junto às lavas do vulcão!

O Inglês — marinheiro frio,
Que ao nascer no mar se achou,
(Porque a Inglaterra é um navio,
Que Deus na Mancha ancorou),
Rijo entoa pátrias glórias,
(...)

O Francês — predestinado —
Canta os louros do passado
E os loureiros do porvir!

Os marinheiros Helenos,
Que a vaga jônia criou,
Belos piratas morenos
Do mar que Ulisses cortou,
Homens que Fídias talhara,
Vão cantando em noite clara
Versos que Homero gemeu ...





O poeta mostra todo seu espanto na terceira parte do poema, ao relatar a cena funeral:

Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais ... inda mais... não pode olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador!
Mas que vejo eu aí... Que quadro d'amarguras!
É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ...
Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror!





A quarta parte mostra com clareza o clima de terror, a violência com que os escravos eram tratados pelos marinheiros, e compara o comandante com Satanás:

Era um sonho dantesco... o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...
(...)
No entanto o capitão manda a manobra,
E após fitando o céu que se desdobra,
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
"Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!..."
(...)
Qual um sonho dantesco as sombras voam!...
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E ri-se Satanás!...

Chegando à última parte o Navio Negreiro mostra os açoites finais de revolta do poeta, versos flamejantes que só fazem confirmar Castro Alves como um dos maiores poetas romântico:

Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança...
Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...



A influência de Victor Hugo é visível, com teor declamativo e pendor social. O condoreirismo foi o hugoanismo brasileiro. Na Europa como no Brasil o poeta tem um papel messiânico e ligado ao seu momento histórico, comprometido em aproximar o discurso com a luta através dos versos de denúncia e a busca por redenção, justiça e liberdade.

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